Artigo publicado por MMT Brasil em 24/05/2021
O Brasil está em vias de extinguir o licenciamento ambiental, pelo esvaziamento completo do próprio conceito e de sua aplicação, com o PL 3729/2004, já aprovado pela Câmara dos Deputados[i]. Essa nova e gigantesca porteira foi aberta para a boiada passar na calada da noite, quando todas as atenções estavam voltadas, triste e ironicamente, à CPI da pandemia. O projeto aprovado vira do avesso a ideia inicial dessa lei, proposta há dezessete anos[ii], e de uma hora para outra, sem nem ao menos disponibilizar o texto a entidades da sociedade civil, descaracteriza completamente o debate acumulado e até as articulações políticas feitas durante esses anos.
Especialistas da área ambiental afirmam inequivocamente que a aprovação da lei resultará na proliferação de crimes e ecocídios, como os de Mariana e Brumadinho, além da expansão do desmatamento, da contaminação de águas e solos, do aumento do lixo urbano não tratado, da perda de biodiversidade e da maior marginalização de povos tradicionais e populações locais nos processos decisórios, disponibilizando suas terras à valorização de capital[iii]. Para citar apenas alguns pontos, a lei prevê treze dispensas de licenciamento para atividades sabidamente impactantes; institui como regra a licença autodeclaratória, que é uma antítese em si mesma; e deixa quase todas as definições complementares e a possibilidade de dispensas adicionais a cargo de estados e municípios, favorecendo uma guerra entre os entes em busca da menor regulação ambiental.
Não é surpreendente que o projeto seja feito para atender aos interesses gerais do grande capital, e sob medida, para setores de alto impacto socioambiental, voltados à exportação de produtos primários. Essa sempre foi uma prioridade do atual governo, que já alicerçava sua campanha caricaturalmente em reservas de Nióbio e nas promessas de abrir novos territórios para a acumulação primitiva. Em agosto do ano passado, já no meio da pandemia, Paulo Guedes publicou resolução, ratificada por Bolsonaro, em que defendia uma Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental para a Produção de Minerais Estratégicos, contando com um modelo de licenciamento simplificado em anexo. Tal política já havia instituído um comitê permanente, coordenado pelo próprio Ministério de Minas e Energia, e com a participação de representantes diretos da Presidência e do Ministério da Economia, para apoiar a liberação de empreendimentos privados. Não há nesse comitê nenhuma vaga nem mesmo para o combalido Ministério do Meio Ambiente[iv]. Ainda, em setembro, foi lançado pelo governo federal o Programa Mineração e Desenvolvimento, que é vago em sua versão pública, mas corresponde a objetivos bastante concretos, ditados pelas entidades do setor, como a abertura de pelo menos oito terras indígenas para a mineração[v].
Como já foi comentado na coluna anterior[vi], a fixação do governo com a mineração tem suas razões geopolíticas. Para além da simples continuidade da nossa condição de periferia exportadora de commodities, a intensificação dessa mesma condição está dada justamente pela busca dos países centrais em evitar uma catástrofe climática por emissão de gases de efeito estufa. A alardeada transição energética passa inevitavelmente por um aumento brutal da exploração mineral, reforçando as múltiplas desigualdades centro-periferia. O estudo analítico mais minucioso nesse sentido, elaborado pela International Energy Agency (IEA), ressalta que, de acordo com os dados atuais, há uma iminente incompatibilidade entre as ambições climáticas globais e a disponibilidade de minerais críticos[vii].
Ao mesmo tempo em que se verifica tamanha complexidade nos desafios ambientais globais e inter-relacionados, e que se almeja maior complexidade para a nossa economia, o neoliberalismo quer uma genérica simplificação. Intensifica a desindustrialização e a reprimarização, pela impossibilidade do investimento estatal, e busca a todo momento desregulamentar e retirar direitos, sob o argumento de que a diminuição de burocracia é que estimula os investimentos. A teoria econômica hegemônica legitima esse discurso, uma vez que restringe a possibilidade de gasto público, bem como caracteriza a regulamentação como mero custo aos entes privados, que provocaria rigidez de preços e dificuldade de entrada de novos ofertantes, impedindo ou retardando o suposto equilíbrio entre oferta e demanda.
Mesmo em versões liberais mais moderadas, que fazem concessões ao papel indutor do Estado e à regulamentação das chamadas externalidades, essas características ficam sempre na berlinda, sujeitas ao ambiente político e macroeconômico, e também, na periferia, à maior ou menor pressão conjuntural do centro do capitalismo. Ainda, a escola da Economia Ambiental, que segue pressupostos neoclássicos, propõe como solução para a degradação do ambiente não a forte regulação e planejamento, mas a internalização de externalidades. Ou seja, a precificação ambiental e a tentativa de abarcar a natureza em novos mercados e em financeirização, seguindo a falácia neoliberal de que as falhas do capitalismo, não só na economia, como também no meio ambiente, ocorreriam justamente por brechas deixadas à vida fora do mercado.
A justificativa de Paulo Guedes para o incentivo à “mineração estratégica” é a de habilitar investimentos em minérios que o país importa; ou aqueles que são necessários à produção de alta tecnologia; ou ainda, aqueles essenciais por promoverem superávit da balança comercial. A baixa importação relativa, mostrada pelo anuário mineral de 2019[viii], invalida o primeiro argumento, ainda mais tendo em vista que grande parte das importações na área se dá justamente pela falta de capacidade mínima até para beneficiar o minério bruto. A pouca ou nenhuma preocupação com pesquisa, investimento e setores de alta tecnologia contradiz também a segunda justificativa. O real motivo segue sendo o simples extrativismo de patrimônio nacional para a exportação, principalmente quando o mundo inicia a corrida por minerais críticos. A busca perene por superávit da balança comercial é a chancela teórica que a ortodoxia confere a uma espoliação que dura séculos, de forma tanto agressiva quanto monotônica, como descrito por Aráoz, em Mineração, Genealogia do Desastre[ix].
Ao passo que é real a necessidade de uma mediação tática, alicerçada na exportação primária para o acúmulo de divisas, até superarmos a dependência, tal superação só virá pelo planejamento e pela utilização da nossa soberania monetária para o investimento público. Infelizmente, até aqui, não só no Brasil como na América Latina, os governos dos variados espectros políticos apenas seguiram, com variações de intensidade e forma, a exploração de recursos finitos, sem pensar estrategicamente tanto a superação da dependência tecnológica, quanto da dependência da destruição ambiental em si. Não só o extrativismo foi impulsionado nos últimos anos, como o potencial hídrico se deslocou do atendimento das necessidades da população para o lucro de grandes grupos econômicos, haja vista o crescimento recente de mineradoras e siderúrgicas proprietárias de hidroelétricas, com lucro garantido pelo Estado em todas as pontas[x].
Nessa configuração, as empresas conseguem diminuir o custo da energia para o seu ramo primário de negócios, além de lucrarem com o fornecimento de energia a preços elevadíssimos para a população que mora ao lado das hidroelétricas. Afora isso, essas grandes plantas hidroenergéticas, distantes da ideia imaculada pela baixa emissão de gases de efeito estufa, estão entre os empreendimentos que mais causam conflitos e impactos socioambientais[xi]. Ainda, o aumento das fontes energéticas renováveis vem servindo de base para o lobby do setor carbonífero conseguir a expansão da produção, sob a justificativa de que fontes renováveis são intermitentes e necessitariam de apoio de uma fonte perene[xii]. Tal fato corrobora a observação histórica de que as denominadas transições energéticas funcionaram na verdade como adições energéticas.
Portanto, um projeto de desenvolvimento real deve considerar não apenas de forma abrangente e macroeconômica a superação da dependência tecnológica e a transição energética, mas trilhar um caminho justo e popular para isso, atentando para a relação de dependência ambiental centro-periferia, e para as inter-relações e impactos socioambientais inerentes a todos os processos econômicos. É premente que economistas comprometidos com tal projeto passem a debater questões socioambientais de forma tão detalhada e atualizada quanto o fazem, por exemplo, com relação à industrialização, e que possam acumular consensos e divergirem tanto quanto fazem ao discutir juro, câmbio, inflação e temas afins.
A Ecologia já apresenta sua própria complexidade, com não-linearidades, pontos de não retorno, equilíbrios dinâmicos, complementariedades entre cooperação, competição, predação, parasitismo e simbiose, bem como características ecossistêmicas ainda totalmente desconhecidas. A ação antrópica sob o capitalismo é tão rápida e intensa que os processos ecológicos se modificam sem ao menos termos tempo de entende-los e, para além disso, sistemas onde há a presença humana, são permeados por intencionalidade, moral e cultura, resultando em complexidades emergentes. Disso decorre que a tentativa neoliberal de desregular e criar mercados ambientais esteja baseada em ingenuidade e pretensão ou, mais comumente, em interesse. A vida em sociedade é complexa e diversa, como é desejável que os ecossistemas sejam, e sistemas complexos não podem, por definição, ser reduzidos a uma perspectiva única, como por exemplo, a monetária. Mais do que nunca, em meio às múltiplas crises que vivemos, é necessário rejeitar o simplismo oportunista e a pobreza existencial da acumulação, e reivindicar a adoção epistemológica e militante da complexidade.
REFERÊNCIAS
ARAÓZ, Horacio Machado. Mineração, Genealogia do Desastre: o extrativismo na América Latina como origem da modernidade. São Paulo: Elefante. 2020.
CASTILHO, Denis. Hidrelétricas na Amazônia Brasileira: da Expansão à Espoliação. V Simposio Internacional de la Historia de la Electrificación: La electricidad y la transformación de la vida urbana y social. Évora, 6 a 11 de maio, 2019.
O’CONNOR, M.; FAUCHEUX, S.; FROGER, G.; MUNDA, G. Emergent complexity and procedural rationality: post-normal science for sustainability. Em: COSTANZA R.; SEGURA, O. (Eds.), Getting Down to Earth. Washington, DC: Island Press, 1996, pp. 223–248.
[i] https://www.extraclasse.org.br/ambiente/2021/05/para-ambientalistas-o-texto-aprovado-extingue-o-licenciamento-ambiental/
[ii] https://deolhonosruralistas.com.br/2019/02/05/como-ruralistas-transformaram-o-projeto-de-licenciamento-ambiental-em-ataque-a-fiscalizacao/
[iii] https://www.extraclasse.org.br/wp-content/uploads/2021/05/Nota-Licenciamento-Ambiental-Versao-final.pdf
[iv] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/601633-guedes-quer-facilitar-licenciamento-ambiental-de-projetos-de-mineracao
[v] https://observatoriodamineracao.com.br/metas-do-governo-federal-para-a-mineracao-foram-ditadas-pelo-mercado-revelam-documentos/
[vi] https://mmtbrasil.com/mmt-e-economia-ecologica-introduzindo-o-debate/
[vii] https://www.iea.org/reports/the-role-of-critical-minerals-in-clean-energy-transitions
[viii] https://www.gov.br/anm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/serie-estatisticas-e-economia-mineral/anuario-mineral/anuario-mineral-brasileiro/amb_2020_ano_base_2019_revisada2_28_09.pdf
[ix] ARAÓZ (2020)
[x] CASTILHO (2019)
[xi] https://www.youtube.com/watch?v=ghIL7ExjaxQ
[xii] https://www.canalenergia.com.br/noticias/53097491/energia-do-futuro-e-renovavel-mas-termicas-seguirao-necessarias