Há uma ideia permeando o mundo da antropologia que pode te fazer repensar o que te faz feliz.
A ideia não é nova. Ela apareceu no senso comum nos anos 1960 e ajudou a consolidar o crescente movimento ambientalista.
E agora vários livros a estão trazendo de volta aos holofotes.
A ideia é simples: talvez os modos de vida americano e europeu não é o ápice da existência humana. A humanidade não progride — de forma linear — em direção a terra prometida. Talvez a sociedade ocidental não seja um etapa mágica na qual a tecnologia nos livra das necessidades básicas e nos permite maximizar o lazer e a felicidade.
Talvez a modernidade tenha feito exatamente o contrário. Talvez os dias mais felizes da humanidade estejam no passado — e no passado remoto.
“Os nômades caçadores-coletores vivam melhor?” pergunta James Lancester em um artigo recente na The New Yorker:
“Estamos nos vangloriando ao acreditar que a vida desses povos era terrível e que a nossa, civilizada, é em comparação maravilhosa”, diz Lancester.
Essa ideia reaparece no fascinante novo livro do antropólogo James Suzman, chamado “Afluência sem Abundância”.
Suzman passou os últimos 25 anos visitando, vivendo e aprendendo com um dos últimos grupos de caçadores-coletores do planeta — os Khoisan ou Bosquímanos no deserto de Kalahari, na Namíbia.
Um estudo realizado nos anos 1960 descobriu que os Bosquímanos encontraram um jeito de trabalharem apenas 15 horas por semana procurando comida e outras 15 a 20 horas em tarefas domésticas. O resto do tempo é usado para relaxar e focar na família, amigos e hobbies.
No novo livro de Suzman, é oferecido um vislumbre de como é a vida nessa cultura eficiente — e como era a vida durante a maior parte da evolução humana.
O que consideramos “humanos modernos” vivem no planeta há 200 mil anos. E durante 90% deste tempo, não havia armazenagem de grãos nem rebanhos prontos para serem abatidos no pasto ao lado da casa. Ao invés disso, nos alimentávamos usando nossos dois pés: caçando animais selvagens e coletando frutas e raízes.
Como a vida das pessoas foi se distanciando do estilo de vida caçador-coletor, talvez tenhamos deixado para trás os elementos da vida que nos faziam felizes. Talvez a cultura dos países “desenvolvidos” tenha deixado buracos na nossa psique.
As experiências de Suzman o tornaram qualificado para tentar responder essas questões filosóficas e oferecer sugestões de como podemos reduzir essa distância. Conversamos com ele sobre seu novo livro.
O que você acha da ideia de o estilo de vida dos caçadores-coletores os faz tão felizes quanto uma pessoa pode ser? Há algo que sugere que isso seja verdade?
Veja, a sociedade bosquímana não é o paraíso. Nas vidas deles, há tragédias e tempos difíceis. As pessoas as vezes ficam bêbadas e brigam.
Mas as pessoas dessa sociedade não se mantêm reféns da ideia de que a grama do vizinho é mais verde — de que se eu fizer X ou Y, minha vida melhoraria visivelmente.
Portanto, a riqueza deles era baseada em ter poucas necessidades que podiam ser facilmente atendidas. Fundamentalmente, eles tem poucos desejos — apenas as necessidades básicas que eram facilmente atendidas. Eles são caçadores habilidosos. Eles podem identificar centenas de espécies diferentes de plantas e sabem exatamente quais partes delas usar e quais partes descartar. Se os seus desejos são limitados, então é muito fácil realizá-los.
Em contraste, o mantra da economia moderna é o da escassez limitada: teríamos infinitos desejos e meios limitados para realizá-los. Trabalhamos e fazemos de tudo para tentar preencher esta lacuna.
De fato, não acredito que os Bosquímanos tenham pensado tanto sobre a felicidade. Não conheço palavras equivalentes à “felicidade” na língua deles, pelo menos não da forma como pensamos nela. Pra nós, a felicidade se tornou um objetivo.
Os Bosquímanos tem palavras para suas emoções, como alegria ou tristeza. Mas não tem uma palavra para essa ideia de “ser feliz” a longo prazo, como se houvesse algo que pudesse ser feito para tornar a vida “feliz” no longo prazo.
Os Bosquímanos tem uma percepção do tempo diferente da que possuímos na cultura ocidental. No seu livro, você diz que pensamos no tempo como algo linear e em constante mudança, mas para eles o tempo é cíclico e previsível. Você acredita que isso os faz mais felizes?
Essa é uma das maiores diferenças entre nós e os povos caçadores-coletores. E fico estupefato que não haja mais antropólogos escrevendo sobre isso.
Tudo nas nossas vidas é voltado para o futuro. Por exemplo, podemos conseguir um diploma para conseguir um emprego, para que possamos ter uma aposentadoria. Para povos agricultores, é da mesma forma. Eles plantam as sementes que irão colher e armazenar.
Mas para os caçadores-coletores, tudo era voltado para o presente. Seu esforço era todo concentrado em atender uma necessidade imediata.
Eles são absolutamente confiantes de sua capacidade de conseguir alimento em seu ambiente quando necessitassem. Portanto, eles não perdiam tempo estocando ou plantando. Seu estilo de vida criou uma perspectiva muito diferente sobre o tempo.
Eles nunca perdiam tempo imaginando futuros diferentes para eles ou para os outros.
Tudo que fazemos hoje é baseado nessa mudança constante e duradoura, ou seja, em nossa história. Olhamos para nós mesmos como sendo parte de nossa história, de nossa trajetória no tempo.
Os caçadores-coletores nunca se preocupavam em se posicionar na história, porque o mundo ao seu redor era sempre basicamente o mesmo. Não mudava.
Sim, pode ser que haja diferentes árvores nascendo ano após ano. Há mudança no ambiente de acordo com as estações do ano. Mas havia uma continuidade sistêmica no todo.
Penso que isso é algo maravilhoso, extraordinário. E penso que é algo que nunca teremos de volta — uma forma diferente de pensar sobre algo tão fundamental quanto o tempo.
Isso se manifesta de muitas formas diferentes. Por exemplo, eu perguntava a um deles o nome de seu bisavô e haviam pessoas que simplesmente não sabiam dizer. Eles não se importavam. Tudo era focado no presente.
Atualmente, as pessoas vão a aulas de mindfulness, aulas de yoga, entre outras coisas, apenas para conseguirem viver no presente. Os Bosquímanos vivem no presente o tempo todo!
E o triste é que, no momento em que você age assim de forma consciente, você deixa de viver no presente.
É como dar o saque perfeito no tênis. Você pode saber toda a teoria do mundo sobre como jogar tênis. Mas dar um saque perfeito é algo profundamente físico. É subconsciente.
Então os Bosquímanos detêm o segredo para a mindfulness e para viver no momento. É essa a fonte da felicidade deles?
Há essa alegria suprema quando temos estes momentos, você sabe, quando o tempo desaparece.
Eu me sentia assim quando era mais jovem, e saia para dançar. O tempo desaparecia. Não havia um antes nem um depois.
Então essa a forma que as pessoas podem entender a noção de tempo dos caçadores-coletores? Viver subconscientemente no momento?
Penso que há algumas coisas na vida moderna que podem preencher a lacuna deixada pela desconexão com a natureza.
Penso que esportes podem preencher esse vazio, ou fazer trilhas longas. Você também pode perder a noção do tempo ao fazer atividades que te façam sentir completo e satisfeito, como fazer artesanato, pintar e escrever.
Depois de passar tanto tempo com os Bosquímanos, a sociedade ocidental parece maluca?
Ha, ha. Quando era mais novo, tinha raiva deste “nós”, ou seja, da forma como as pessoas em nossa sociedade se comportam.
Mas ao longo do tempo, percebi que se tenho a cabeça aberta em relação a meus amigos Bosquímanos, tenho que ter também em relação as pessoas daqui.
Portanto, essas experiências na verdade humanizaram as duas sociedades. Eu percebi que todos os tipos de gente — e suas culturas — são igualmente inteligentes e burras.