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Quem cuida para que tudo possa acontecer?

(Artigo publicado em 26/07/2021 por MMT Brasil)

Esse artigo tem uma contextualização particular, que eu não poderia deixar de apresentar. Escrevo após duas noites sem dormir, e após mais de um ano de tantas outras noites iguais, porque de madrugada tenho um trabalho. Trabalho na atividade noturna de cuidar do meu filho, o que é também um trabalho diurno em tempo integral, junto com os outros trabalhos de cuidar da casa e da comida. Para escrever esse artigo, pedi a ajuda de outras pessoas, que realizaram por algumas horas o trabalho de cuidar dele. Escrevo, portanto, motivada pela notícia de que a Argentina deu um passo muito importante em direção à maior justiça social, ao decretar que mulheres possam adicionar de 1 a 3 anos de cuidados com cada filho ao tempo de contribuição para a aposentadoria. Com isso, o país vai ao encontro dos vizinhos latino-americanos, Uruguai e Chile, que já possuem leis semelhantes[i].  

Se para alguns esse pode parecer um tema marginal e de pouca relevância, isso é assim justamente porque a economia capitalista e o tipo de desenvolvimento que ela enseja são muito bem-sucedidos em desvalorizar tudo o que é central para a vida e inclusive, para a própria economia capitalista. O tratamento setorial e posterior que costuma ser destinado ao meio ambiente no pensamento econômico e nas políticas macroeconômicas, é o mesmo reservado à chamada Economia do Cuidado, que normalmente aparece nas teorias e políticas apenas de forma pontual e representada pela reivindicação de medidas voltadas à equidade de gênero.  

No entanto, tanto o ambiente no qual estamos inseridos, quanto os trabalhos de cuidado necessários à reprodução social, são basilares para que a própria economia aconteça. Isto é, não podem ser tratados de forma posterior ou paliativa, porque são os elementos que possibilitam qualquer existência social e econômica. A acumulação capitalista, inclusive, se dá pela expansão constante não apenas da economia de mercado, mas primordialmente do que está fora dela. Assim, conforme propõe a Economia Ecológica, aquilo que a economia hegemônica chama de externalidades, supostamente meros efeitos colaterais do funcionamento da economia, deveriam ser o objeto primordial do estudo econômico. Ou seja, a consideração das externalidades, ou de como a economia capitalista utiliza e afeta o meio-ambiente e o trabalho de reprodução social não pago, deveria vir fundamentalmente antes do estudo de internalidades, a parte da economia interna ao sistema de preços[ii].

Uma das diversas consequências da pandemia foi explicitar algo que a Economia Feminista já vinha alertando há tempos, o fato de que o nosso tipo de desenvolvimento econômico está nos levando a uma crise do cuidado. Por um lado, há um aumento da demanda por cuidados, advindo do envelhecimento da população, e de novas epidemias e doenças, como Ebola, HIV, Zika e Covid-19, propiciadas pelo crescimento urbano e industrial desordenado e em desequilíbrio com o ambiente. E por outro, há a pressão competitiva nas nossas vidas e a necessidade de dispender tempo na economia monetizada, algo que se acirra no contexto neoliberal, levando ao desinteresse, à inabilidade e à falta de tempo e desejo de se dedicar ao cuidado dos outros e de si.

De forma resumida, a Economia do Cuidado pode ser dividida em (i) trabalhos diretos, que são aqueles diretamente relacionados à outra pessoa, como, por exemplo, dar comida, dar banho, ajudar no dever de casa, levar alguém ao médico; e (ii) trabalhos indiretos, aqueles necessários à manutenção de si e dos demais, mas que não constituem uma atividade direta com o outro, como cozinhar, lavar, limpar, ir ao mercado, e, no contexto rural, adicionam-se tarefas como abastecimento de água, fazer fogo, plantar e colher. É também estratificada em (i) trabalho não pago, que pode ocorrer em contexto doméstico ou no voluntariado; e (ii) trabalho pago, que pode ser formal ou informal, englobando os setores de saúde, serviço social e educação, bem como o de trabalhadoras/es domésticos e o de cuidados pessoais. Os cuidados podem ser direcionados a crianças, idosos, pessoas com deficiência, doentes, temporariamente desabilitadas e ao autocuidado[iii].

Apenas com relação ao trabalho de cuidado não pago, as estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) são de que as mulheres realizam globalmente 76,2% desse trabalho, e que ele representa 16,4 bilhões de horas trabalhadas todos os dias, o que seria equivalente à 2 bilhões de pessoas trabalhando 8 horas por dia de forma não paga. Caso isso fosse remunerado a um salário mínimo global estimado, essa renda resultaria em cerca de 9% do PIB mundial. Já o trabalho de cuidado pago representa aproximadamente 11,5% do total dos empregos globais, e as mulheres seguem sendo maioria nessa categoria, embora o percentual caia para 65,4%[iv].

No entanto, não se trata de internalizar o que está fora do mercado. Mesmo para aqueles que defendem um paradigma reformista, não seria possível nem desejável mercantilizar muitos dos trabalhos de cuidados. O cuidado direto, por exemplo, é inerentemente intensivo em trabalho, ou seja, não pode ou não deve ser mecanizado ou comodificado. São atividades relacionais, nas quais o que importa é justamente a qualidade do vínculo estabelecido e do trabalho executado. Da mesma forma, não é possível falar em aumento de produtividade, algo sempre perseguido pelas políticas macroeconômicas, com vistas ao crescimento econômico, pois se é o tempo gasto com o outro que constitui o cuidado, o próprio conceito de produtividade em muitas das atividades aqui não faria sentido. Pelos mesmos motivos, há também limites evidentes aos ganhos de escala nesses setores[v].

Assim, há um espaço limitado para o aumento de lucros pelo setor privado, que só proverá tais atividades às custas da sua qualidade, isto é, do bem-estar da população. Ao mesmo tempo, são trabalhos basais para a vida em sociedade e que, nos marcos do capitalismo, já ocorrem por meio da exploração invisibilizada e precarizada da força de trabalho feminina, o que penaliza enormemente as mulheres e o próprio exercício dos cuidados. Portanto, são atividades que necessitam de regulação e investimento estatal e que geram inúmeros benefícios em termos de aumento de bem-estar, diminuição da desigualdade de gênero, raça, renda e da pobreza em geral, além de serem relativamente pouco intensivas em utilização de recursos e geração de lixo e emissões, o que também coaduna com nossos objetivos ambientais.

Contudo não é possível concluir que políticas voltadas aos cuidados gerem inequivocamente crescimento econômico, dada a possível realocação de trabalhadoras/es para as referidas atividades de menor produtividade. Por outro lado, sabemos que é viável promover investimentos e estímulos fiscais que gerem crescimento, baseado em baixa criação de empregos, aumento da concentração de renda, de outras desigualdades estruturais e de destruição ecossistêmica[vi]. Esse paralelo reforça a necessidade premente de dissociarmos a busca por desenvolvimento inclusivo, ecologicamente correto e com aumento de bem-estar, do crescimento do PIB como fim em si mesmo.   

As propostas advindas da Economia Feminista voltadas aos cuidados passam pela promoção (i) do reconhecimento social e econômico desses trabalhos;  (ii) da redução da carga de trabalho desnecessária, por meio de tecnologia, bens e serviços públicos; (iii) de estratégias para a redistribuição mais equitativa da prática de cuidados entre os gêneros, incluindo a universalização das flexibilizações trabalhistas que visam possibilitar o cuidado dos dependentes, e a diminuição geral de horas de trabalho no mercado para maior tempo para cuidados domésticos; (iv) da recompensa justa e com trabalhos dignos na área dos cuidados; e (v) da representação dessas trabalhadoras e trabalhadores na esfera política.  

Com isso, entendemos que o reconhecimento de tempo de cuidado para a aposentadoria deve ser sim fato amplamente comemorado, mas tal medida representa apenas uma compensação mínima pelos anos em que as mulheres, majoritariamente, não puderam estar no mercado de trabalho formal, contribuindo para a previdência. Sem uma renda pelo trabalho de cuidados, no momento em que ele está sendo realizado, esse trabalho ainda não está sendo plenamente reconhecido como tal. As mulheres seguem assim entre as opções de estarem presas financeiramente a outra pessoa, ou de terem que trabalhar em jornadas duplas ou triplas, buscando sustento e ao mesmo tempo, realizando o cuidado com baixa qualidade e terceirizando parte dos cuidados para, novamente, mulheres. Outras culturas consideram que desenvolvimento é justamente o processo de auxiliar os demais nas etapas da vida onde não puderem passar sozinhos, é possibilitar o desenvolver da vida. Cuidar é, assim, desenvolver no sentido mais fundamental da palavra, e essa talvez seja a última fronteira do capitalismo, onde o individualismo, a mecanização e a mercantilização são impossíveis, sob pena de engolirem a si próprios. Na valorização do cuidado temos a chance de permanecermos vulneráveis, solidários, conectados e inevitavelmente, humanos.          

REFERÊNCIAS

ADDATI, L.; CATTANEO, U.; ESQUIVEL, V.; VALARINO, I. International Labour Organization (ILO). Junho de 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_633135.pdf.

FOLBRE, N. Measuring Care: gender, empowerment and the care economy. Journal of Human Development. 7 (2), pp. 183 – 189. 2006.  

ILKKARACAN, I. The Purple Economy Complementing the Green: towards sustainable and caring economy. Artigo apresentado no Levy Economics Institute and Hewlett Foundation. Workshop on “Gender and Macroeconomics: Current State of Research and Future Directions”, 2016, NY. Disponível em: https://kadinininsanhaklari.org/wp-content/uploads/2019/05/2016.PurpleEconomy.Ilkkaracan.Levy-Hewlett.pdf

ILKKARACAN, I.; KIM, K; MASTERSON, T.; MEMIS, E.; ZACHARIAS, A. The impact of investing in social care on employment generation, time-income-poverty by gender: A macro-micro policy simulation for Turkey. World Development, nº 144, 2021.

MARTÍNEZ-ALIER, J. & MURADIAN, R. Handbook of Ecological Economics. Massachussets: Edward Elgar Publishing, 2015.


[i] FOLHA. Argentina reconhece cuidado materno como trabalho para aposentadoria. 23 de julho de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/argentina-reconhece-cuidado-materno-como-trabalho-para-aposentadoria-entenda.shtml#:~:text=O%20benef%C3%ADcio%20se%20dirige%20a,regra%20alcance%20155%20mil%20mulheres.

[ii] Martínez-Alier & Muradian, 2015.

[iii] Um esforço de sistematizar e mensurar a Economia do Cuidado pode ser encontrado em Folbre (2006).

[iv] Addati et al (2018).

[v] Ilkkaracan (2016).

[vi] Ilkkaracan et al (2021).

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Como o neoliberalismo quebra os estados brasileiros

(Artigo publicado em 13 de julho de 2021 por Outras Palavras)

Por Isabela Prado Callegari e Maria Regina Paiva Duarte

Já é de longa data o assunto das dívidas impagáveis dos Estados brasileiros e os reiterados pacotes de medidas de austeridade, impostos como condição à renegociação de tais dívidas com a União. A dívida do Rio Grande do Sul, e a de outros Estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, não tem como ser solucionada com base na premissa moral da austeridade. É errado supor que existe um desequilíbrio, causado por excesso de gastos ou má gestão, que possa ser respondido localmente. Em nenhum momento se enfrenta, de verdade, o fato de que a dívida dos Estados com a União tem origem na década de 1970, ainda na ditadura, após a reforma tributária de 1966.

Estabeleceu-se um pacto nacional à época, com a centralização das receitas na União. Ou seja, fez-se uma escolha política relativa à forma de gerenciar receitas e gastos públicos. Justamente para compensar essa centralização de receitas, era permitido e estimulado que bancos públicos estaduais emitissem dívida, tal como faz a União. Uma dívida pública interna constitui um instrumento de política econômica, isto é, uma dívida que não é para ser necessariamente quitada em algum momento, mas sim, gerenciada, de acordo com os ciclos macroeconômicos, promovendo investimentos de longo prazo e gastos contra-cíclicos que mantêm serviços públicos e demanda local. Não à toa os Estados mais endividados são os ditos mais desenvolvidos, MG, RS, RJ e SP. Ao contrário do que diz o argumento moral repetido à exaustão, de que a dívida é um peso a ser deixado para as gerações futuras, observa-se que a austeridade deixa para as gerações futuras um legado de terra arrasada, pela falta de patrimônio, de serviços públicos e de infraestrutura.

Com a alta disponibilidade de dólares no mercado mundial e juros baixos nos anos 1970, os Estados contraíram inclusive empréstimos externos, algo muito distinto de uma dívida interna. A crise dos anos 1980 se deu justamente pela reversão dessa liquidez internacional, que atingiu tanto a União quanto os Estados, com enorme aumento de taxas de juros, endividamento crescente e crise da dívida. A diminuição de receita estadual foi intensificada ainda pela Lei Kandir, que exonerou exportações, sendo que os Estados ficaram sem a compensação prometida pela União. Além disso, a industrialização foi também enormemente prejudicada com essa medida.

Após o plano Real, que aumentou taxas de juros, piorando a situação das dívidas estaduais, em 1997, a União assumiu e refinanciou as dívidas dos estados, sob uma série de condições, e proibindo-os de emitir novas dívidas1. Isto é, a própria União centralizou todas as receitas, estimulou o endividamento estatal e, em seguida, proibiu que estes entes emitissem novas dívidas e as refinanciou em termos abusivos. Essas condições asfixiam a capacidade de prover serviços públicos garantidores de direitos e, portanto, de atuar localmente de forma responsável com a população.

Existe uma premissa lógica básica omitida nesse debate. Se a economia capitalista opera em ciclos de alta atividade econômica, com maior receita de impostos, e de baixa atividade, com perda de receita, e se o Estado deve prover serviços e manter a máquina pública de forma perene, e para uma população crescente, a dívida é um mecanismo inevitável, a não ser que se abdique da própria lógica de atuação do Estado. E é justamente isso que os chamados pacotes de austeridade fazem, como se a privatização irrestrita e a venda de patrimônio fossem a consequência de uma gestão irresponsável, e não a premissa de um raciocínio ideológico.

Sob o manto do responsabilismo fiscal, de uma suposta busca por eficiência na gestão pública, com a venda de empresas estratégicas para o desenvolvimento e a culpabilização dos servidores, os governos estaduais não estão buscando realmente solucionar um problema, mas sim, aceitando uma escolha política e uma imposição da União. Essa por sua vez, tem plena capacidade de emitir reais e, portanto, de anular tais dívidas se assim decidisse. Além disso, é no plano nacional que se deveria fazer uma reforma tributária progressiva e que reequilibrasse a distribuição de receitas. Se, de fato, os governadores estivessem interessados em se desvencilhar da asfixia fiscal, deveriam discutir isso de forma conjunta, no terreno da política não da contabilidade.

Caso criar limites para a dívida fosse a saída, as finanças já tinham sido solucionadas, pois o limite da dívida/PIB foi criado ainda no final dos anos 1960 (Resolução do Senado Federal n. 58 de 23/10/68 e Resolução n. 92 do Senado Federal de 27/11/70).

No caso do Rio Grande do Sul, a dívida que era de 22,6% do PIB em 1994, passou a 50,2% em 1998, conforme dados brutos da Secretaria da Fazenda (Sefaz). Com a desvalorização cambial do final dos anos 1990, e em 2002 também, houve impacto na dívida dos Estados por causa do índice de correção, que era o IGP-DI, altamente influenciado pelo câmbio. Em 2019, a dívida consolidada do estado era de R$73,3 bilhões, sendo R$63 bilhões com a união2.

Ou seja, o Estado pagou, pagou e outra vez pagou, e a dívida aumentou. São fatos que comprovam que a dívida que aí está não se deve a um Estado gastador, irresponsável fiscalmente ou coisa que o valha. Aliás, o combate ao Estado “gigante” vem de décadas. Nos anos 1990, nem bem tínhamos começado a respirar os ares da nova Constituição de 1988, e após o plano Real, no bojo das medidas que materializavam as políticas neoliberais aplicadas no Brasil (e em outros países), se empreendeu uma verdadeira guerra ao Estado, tanto nacional quanto subnacional. Ainda que esteja evidente que o endividamento dos entes subnacionais cresceu pelo próprio acordo feito com a União e não por aumento de gastos, persiste-se na narrativa do “Estado gastador”.

Agora, temos a Lei Complementar 178/21 (Novo Regime de Recuperação Fiscal – RRF, janeiro de 2021):

A lei permite que os entes com baixa capacidade de pagamento voltem a contratar operações de crédito com aval do governo federal. Em troca, eles se comprometem a adotar medidas de ajuste fiscal. (Fonte: Agência Senado).

E quais são essas medidas? Redução de despesas com pessoal, privatizações, encolhimento dos estados. No ano de 1995, o Conselho Monetário Nacional, ao emitir a Resolução nº 162, indicava o arcabouço que embasaria as futuras medidas de ajuste fiscal a serem adotadas pelos Estados e Distrito Federal. E quais eram as orientações legais à época?

 controle e redução da despesa de pessoal;

 privatização, concessão de serviços públicos, reforma patrimonial e controle de estatais estaduais;

 aumento da receita, modernização e melhoria dos sistemas de arrecadação, de controle de gasto e de geração de informações fiscais;

 compromisso de resultado fiscal mínimo; e

 redução e controle do endividamento estadual.

Ou seja, a linha adotada à época é muito semelhante à de agora, pois o governo que aderir ao novo regime deverá, em contrapartida, vender estatais, adotar reforma previdenciária semelhante à do Governo Federal (Emenda 103, de 2019) e reduzir, ao menos em 20%, suas renúncias fiscais. Outro fato de extrema relevância, que passou desapercebido, está na inserção de um parágrafo 7º no artigo 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece que:

…os Poderes e órgãos referidos neste artigo deverão apurar, de forma segregada para aplicação dos limites de que trata este artigo, a integralidade das despesas com pessoal dos respectivos servidores inativos e pensionistas, mesmo que o custeio dessas despesas esteja a cargo de outro Poder ou órgão.”

Dessa forma, os inativos de outros poderes como Judiciário e Legislativo passam a ser considerados para fins dos limites de despesa de pessoal junto aos critérios da LRF para o respectivo poder, o que coloca diversos Estados automaticamente acima dos seus limites prudenciais de gastos, sem mudar o montante de gastos, mas sim, alterando a forma de contabilidade definida pela Lei… Ou seja, novamente, a lógica da responsabilidade fiscal como fim em si mesma.

As bases teóricas do neoliberalismo e da austeridade foram postas em xeque por três fatos sequenciais fundamentais: a crise de 2008, a ascensão da China, e a pandemia da Covid-19. A despeito de uma relativa movimentação teórico-política em âmbito internacional, a lógica que persiste hegemônica no Brasil é a falácia de que o Estado tem que atuar como uma dona de casa ou como uma empresa, colocando as finanças públicas como fim em si mesmas, sendo que elas deveriam ser um simples resultado contábil do atendimento das demandas sociais, uma vez que somos um país monetariamente soberano. Os entes subnacionais não possuem margem de manobra para gastos, com emissão de moeda, tal como faz a União, e por isso mesmo, são as escolhas dessa última que os amarram para depois promover uma solução privatista conveniente aos anseios do mercado.

Subitamente, ou nem tão subitamente assim, porque o processo não foi tão rápido, o dinheiro apareceu para pagar auxílio emergencial, por exemplo. Diversos setores da sociedade passaram a questionar de onde havia surgido o dinheiro gasto no combate à pandemia, que antes era negado, mesmo para a garantia de direitos básicos, com base em uma suposta impossibilidade orçamentária. A continuidade do auxílio, somando insuficientes R$ 44 bilhões, foi autorizada como moeda de troca para a aprovação de uma nova regra fiscal, de longo prazo, a chamada PEC Emergencial (EC 109). Essa, por sua vez, instituiu uma espécie de subteto de despesas correntes dentro do teto de despesas totais, com gatilhos que permitem o congelamento de salários de servidores públicos, impedem a criação de novas despesas e pioram as restrições da LRF para estados e municípios, dentre outras coisas.

O pagamento do auxílio emergencial em 2020, que custou cerca de 3,95% do PIB, mostrou que é possível fazer políticas que diminuam de forma rápida e efetiva a desigualdade, garantam direitos básicos e mantenham certa estabilidade de demanda, mesmo em um cenário como o da pandemia. Se a queda na pobreza e na desigualdade foi alcançada unicamente pela emissão monetária voltada à base da pirâmide,a real promoção de justiça social poderia ser alcançada com gasto público bem direcionado, aliado ao imprescindível aumento da progressividade tributária e da taxação de altas rendas e elevados patrimônios.

O Instituto Justiça Fiscal (IJF) é membro de uma campanha intitulada “Tributar os Super-Ricos”, em que apresentamos algumas medidas (projetos de lei) que podem contribuir para que Estados e Municípios obtenham mais recursos. Porque as receitas dos Estados dependem fundamentalmente do ICMS, que está relacionado diretamente à atividade econômica, e temos um problema no lado das receitas, não do gasto. As medidas para estimular o incremento das receitas são:

– Correção das distorções do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), imposto que compõe o Fundo de Participação Estadual (FPE). O aumento da base de cálculo deste imposto seria em torno de R$ 600 bilhões;

– Instituição do Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF) para riquezas das pessoas físicas que ultrapassarem a R$ 10 milhões, possibilitando arrecadação de mais de R$ 40 bilhões. A instituição do IGF também ajudará Estados, DF e Municípios.

– Novas regras de repartição de receitas da União com Estados e Municípios, que poderão promover acréscimo de aproximadamente R$ 83 bilhões para os Estados e R$ 54 bilhões para os Municípios.

Outra proposta importante e que repercute na receita dos Estados é mudança nas regras do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), com ampliação da alíquota máxima de 8% para 30%, aproximando o Brasil do que é praticado internacionalmente, estimando-se acréscimo de arrecadação da ordem de R$ 14 bilhões. A alíquota média praticada no Brasil, na faixa de 6%, encontra-se muito abaixo das alíquotas praticadas em outros países, fazendo com que fortunas sejam passadas de geração em geração sem pagar os tributos que seriam adequados. Portanto, aumentar as alíquotas do ITCMD e conferir maior progressividade ao imposto sobre heranças e doações é fundamental.

Propõe-se a destinação de 8% sobre a arrecadação do IRPF para Estados, Distrito Federal, e de 2% para Municípios, a serem distribuídos 50% proporcionalmente à população e 50% na proporção inversa do PIB per capita, sem prejuízo da repartição prevista no art. 159, inciso I da CF/1988. O projeto estabelece, também, a distribuição de 10% da arrecadação do IGF que vier a ser instituído pela União, para Estados e Distrito Federal, e de outros 10% da arrecadação do mesmo imposto para Municípios. Ainda que tais medidas devam tramitar no Congresso Nacional, é fundamental que os Estados as apoiem, em conjunto, como forma de escapar da armadilha da discussão sobre a dívida, que é impagável e submete os entes subnacionais a um garrote sem fim.

Por fim, observamos que é fundamental apresentar à sociedade outros pontos de vista relativos à questão do endividamento, fundamentados em outros princípios específicos da macroeconomia, da tributação e da economia política em geral. A abordagem da questão do endividamento, como é feita no Brasil, só faz aumentar a submissão dos Estados e da população, ameaçada na garantia de seus direitos, submete os servidores públicos, presos em uma lógica mercantilista que não coaduna com o interesse público, e leva a sociedade a uma parte mais funda do buraco em que estamos. Igualmente, também não é possível achar que só com arrecadação de tributos ou de venda de estatais os serviços públicos vão ser financiados. O Estado precisa gastar, inclusive para arrecadar, e o déficit do Estado é, por definição, o superávit do setor privado. É necessário acabar com a valoração moral do déficit e da dívida, que carece de fundamentação na realidade. Eficiente e responsável é utilizar soberania monetária, capacidade de cobrar tributos e de realizar gastos para cumprir os objetivos plasmados na Constituição Federal.

1 https://garantias.tesouro.gov.br/dividas/

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2 Para compreender em detalhe a crise das finanças gaúchas, que antecipa o futuro da maioria dos Estados brasileiros, ver: ÁVILA, Róber Iturriet. Situação Fiscal do Rio Grande do Sul – aula. Canal do Youtube, 05 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M0NNW0WwlNY&t=2249s.