Brasil, Congresso, Política

De olho no congresso: a venda de terras a estrangeiros

Por Isabela Prado Callegari e Queren Rodrigues

Mestrandas em Economia pela Unicamp

 

No último dia 24, enquanto milhares de pessoas protestavam nas ruas de Brasília e do restante do país, congressistas aproveitaram o desvio das atenções e a ausência de oposição no plenário para aprovar seis medidas provisórias nefastas à população[1]. A primeira foi justamente a de maior interesse do agronegócio, a MP 759, ironicamente nomeada MP da regularização fundiária, mas que promove o inverso disso, premiando a grilagem e a mercantilização de lotes de reforma agrária[2]. Com a mesma celeridade e ainda se aproveitando da crise política, a medida já foi aprovada também pelo Senado nesta semana[3].

Além da MP 759, estão sendo aprovadas a toque de caixa diversas outras medidas que inviabilizam ainda mais a preservação ambiental, a sobrevivência e autodeterminação dos povos tradicionais. Foram já aprovadas as MP 756 e 758 que reduziram unidades de conservação no Pará e em Santa Catarina e estão na ordem do dia medidas para anular recentes demarcações de terras indígenas, quilombolas e reservas florestais, além da flexibilização do licenciamento ambiental e da venda de terras a estrangeiros[4].

O entrevistado Raul Bergold, pesquisador em direito pela PUC PR, informa que existem atualmente dois projetos de lei, tramitando em urgência, para mudar a legislação acerca da venda de terras rurais para estrangeiros, o PL 2.289/2007 e o PL 4.059/2012. Hoje a legislação delimita restrições para a aquisição de terras rurais por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, bem como para empresas brasileiras cujo capital seja majoritariamente estrangeiro. Para adquirir terras que excedam tamanho especificado pela lei, tais pessoas e empresas precisam de autorização do Incra, ou de projeto de exploração aprovado pelo ministério competente e autorização do Congresso Nacional, ou do Conselho de Defesa Nacional, a depender do tamanho e da localização da área a ser comprada ou arrendada. Ambos os projetos prometem acabar com essas exigências, variando pouco entre si.

O interesse do governo Temer nesse assunto é tão explícito que se cogita também a possibilidade de o realizar por meio de Medida Provisória, de autoria de Eliseu Padilha da Casa Civil. Na mesma linha, em fevereiro deste ano, Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, havia dado como certa a liberação da medida até março[5]. Obviamente, as restrições atuais embargam planos de empresas estrangeiras ou de capital estrangeiro para a exploração dos recursos brasileiros, mas os interesses que estão por trás do projeto ainda não são totalmente claros. A bancada ruralista apresentou o projeto como prioritário à Michel Temer ainda enquanto presidente interino e, no entanto, as divergências dentro do próprio congresso e da bancada persistem, por exemplo, com relação à restrição de tamanho, local e atividades das terras a serem liberadas, uma vez que a liberalização poderia representar maior competição para os próprios ruralistas nacionais. Por outro lado, a Casa Civil deixa claro que quer a liberalização irrestrita[6].

Novamente, a JBS pode estar no centro dessas articulações[7]. A empresa já possui mais de 80% das suas operações no exterior, a maioria nos Estados Unidos, e vez que está na mira de diversas investigações seguidas desde o ano passado, com seus lucros caindo substancialmente[8], a empresa já planejava desde dezembro uma abertura de capital na bolsa de Nova York, para aumentar sua capacidade de financiamento[9]. A abertura foi adiada até o presente momento devido ao novo escândalo, aguardando uma melhora nas avaliações de suas ações. Fato é que após as mudanças promovidas pelo atual governo com relação à taxa de juros de longo prazo do BNDES[10], visando equipará-la às taxas de bancos privados brasileiros, bem como com após a descoberta do possível favorecimento ilícito que a JBS obteve nos financiamentos, essa fonte de financiamento primordial estaria perdida daqui para frente. Esse fator aliado à crise nacional que se arrasta impulsiona a empresa a buscar cada vez mais financiamento no mercado de capitais externo, podendo se tornar uma empresa brasileira de capital estrangeiro.

Ademais, os acontecimentos recentes na política nacional mostram a relação íntima entre os donos e diretores da JBS e os ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da Fazenda, Henrique Meirelles. O primeiro possui fazendas inteiras dentro de áreas irregulares, exercendo pecuária sem licença para tal, e documentos comprovam a venda de centenas de cabeças de gado do ministro para a JBS, provavelmente advindas dessas áreas. Os áudios entre o diretor de relações internacionais da empresa, Ricardo Saud, e o deputado Rodrigo Loures (PMDB) revelam ainda os esforços empenhados em blindar o ministro[11]. Henrique Meirelles, por sua vez, era presidente da holding J&F logo antes de assumir como ministro, mas não é mencionado em nenhuma das delações, o que é convenientemente estranho. Da mesma forma, as conversas de Joesley Batista com Michel Temer deixam clara a facilidade de interlocução da JBS com o ministro e, no entanto, não existem encontros oficiais registrados sua agenda pública[12]. Sabe-se ainda que a JBS financiou em 2014 com altas quantias quase 2 mil políticos, candidatos a todos os cargos, executivos e legislativos, por meios lícitos e ilícitos, o que coloca praticamente o congresso inteiro e o governo trabalhando a seu favor[13].

Com relação ao projeto em questão, além dos perigos à soberania nacional, a liberalização das terras ao capital reflete principalmente um problema mundial crescente, denominado land grabbing, no qual o estresse hídrico, climático, energético e alimentar aumenta a privatização de terras e de recursos em larga escala, colocando também em perigo a soberania com relação a esses outros fatores[14]. O Incra ressalta ainda que a liberação tende a causar uma explosão no preço das terras, inviabilizando ainda mais as desapropriações para fins de reforma agrária[15]. É claro que os favorecimentos ocorridos por meio do BNDES e a chamada política de campeões nacionais são passíveis de inúmeras críticas, que ficam explícitas no caso da JBS. No entanto, o Estado continua sendo mecanismo imprescindível para a soberania e o controle dos recursos, sendo condição necessária, embora não suficiente. A questão é reivindicar a democracia de alta intensidade, na qual o Estado deve estar a favor dos cidadãos e não aliado às grandes empresas. Por outro lado, a desregulamentação e a liberalização ao capital estrangeiro novamente e cada vez mais colocam nosso território e recursos a serviço da especulação, piorando um cenário que já é caótico, e regredindo qualquer possibilidade de desenvolvimento real. Nos resta ficar atentos às movimentações com relação a esse projeto e aos interesses que o impulsionam.

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-05/sem-oposicao-em-plenario-camara-aprova-seis-mps

[2] http://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2017/05/ativistas-alertam-medida-provisoria-759-vai-privatizar-terras-publicas-e-acabar-com-reforma-agraria

[3] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/01/senado-aprova-mp-com-novas-regras-para-regularizacao-fundiaria/

[4] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40089000

[5] http://www.valor.com.br/brasil/4871646/meirelles-diz-que-venda-de-terra-estrangeiros-comeca-em-30-dias

[6] http://www.valor.com.br/agro/4928916/casa-civil-quer-venda-de-terra-estrangeiro-sem-limite-de-area

[7] https://www.cartacapital.com.br/politica/a-jbs-e-a-venda-de-terras-a-estrangeiros

[8] http://www.conjur.com.br/2017-mai-19/limite-penal-entenda-golpe-mestre-joesley-jbs-via-teoria-jogos

[9] http://www.valor.com.br/politica/4972876/analise-joesley-rifou-brasil-para-garantir-migracao-da-jbs-aos-eua

[10] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-03/governo-vai-criar-nova-taxa-para-emprestimos-do-bndes

[11] http://outraspalavras.net/deolhonosruralistas/2017/06/05/documentos-mostram-que-eliseu-padilha-vendeu-gado-ilegal-jbs/

[12] https://theintercept.com/2017/05/26/a-conveniente-ausencia-de-henrique-meirelles-na-delacao-da-jbs/

[13] http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/quem-sao-os-quase-2-mil-candidatos-que-a-jbs-diz-ter-financiado/?utm_source=Congresso+em+Foco&utm_campaign=e9f1a2a156-EMAIL_CAMPAIGN_2017_05_30&utm_medium=email&utm_term=0_96c738fd51-e9f1a2a156-171789257

[14] http://brasildebate.com.br/sobre-a-liberacao-da-venda-de-terras-para-estrangeiros-no-brasil/

[15] https://www.brasildefato.com.br/2017/02/20/governo-temer-diverge-sobre-projeto-de-venda-de-terras-a-estrangeiros/