Feminismo

Punitivismo: remediação doentia

Ontem, devido a repercussão massiva do caso absurdo de um estupro coletivo no Rio de Janeiro, tive o desprazer de ler algumas pessoas apoiadoras de Bolsonaro comentando o caso. Argumentavam que tais episódios não aconteceriam se nós parássemos de culpar o machismo por essas mazelas, e apoiássemos o nobre deputado, que possui dentro do seu rol de brilhantes propostas a castração química de estupradores. Cabe mencionar, em primeiro lugar, que se esse ser humano realmente se indignasse com estupradores e violentadores, obviamente não exaltaria na Câmara dos Deputados e em rede nacional um coronel conhecido justamente por colocar ratos na vagina de mulheres. Também não associaria estupro à merecimento, como fez em famigerado episódio com a deputada Maria do Rosário. Enfim, se realmente se importasse com isso, não seria o indivíduo que ele é.

Eu adoraria ignorar enormemente a existência do Bolsonaro na minha vida, mas, no entanto, é preciso falar disso e de como as pessoas exaltam as ideias mais repugnantes e inócuas como supostamente medidas justas e eficazes. Quanto mais bárbaro é um crime, a tendência é de que as punições igualmente bárbaras e extremas soem como justiça e solução ao ouvido de algumas plateias. Os demagogos oportunistas sabem que é isso que faz sucesso, que choca e que dá ibope… E aí que sempre que algum crime hediondo acontece e tem repercussão, esses pulhas ganham espaço e a surrealidade vem a tona de novo… Castração química! Redução da maioridade penal! Pena de morte! Linchamento! Justiceiros!…  Civilização ou barbárie? Vocês já olharam os números? Já avaliaram a eficácia do punitivismo? Isso pra não falar de quando a pressa no justiçamento e a sede por vingança afeta inocentes e comete injustiças e atrocidades…

O Brasil tem a 4ª população carcerária do mundo, em relação à população total, de acordo com estudo de 2015, ficando atrás apenas de Tailândia, Rússia e Estados Unidos (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/23/prisoes-aumentam-e-brasil-tem-4-maior-populacao-carceraria-do-mundo.htm). Se o aumento dessa taxa continuar no mesmo ritmo, em 2075 teríamos um em cada dez brasileiros presos. Que cenário maravilhoso não? Ou seja, as prisões estão abarrotadas, cada vez se encarecera mais. Se dependesse de punição, nosso país estaria entre os mais seguros do mundo! A Lei Maria da Penha, embora representando grande avanço institucional no reconhecimento da violência específica contra a mulher, tem eficácia reduzida. Estudo de 2011 mostra que apesar de uma ligeira queda do feminicídio imediatamente após a vigência da lei, a mortalidade de mulheres por agressões voltou a subir logo em seguida, de modo que não houve impacto significativo da instituição da lei na taxa de feminicídio. (lei http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf).

Acontece que a punição é uma remediação tosca e na maioria das vezes extremamente falha, especialmente em casos como o da violência contra as mulheres. Querem os gênios da punição salvar as mulheres com mais encarceramento somado à negação da existência do machismo e da cultura do estupro. Querem reforçar noções doentias, como homem de bem, mulher pra casar, pregar heteronormatividade e homofobiapara, em seguida, punir estupradores como sendo monstros estranhos à sociedade ou seres desprovidos de suas faculdades mentais. Não, esses homens não são loucos. São homens perfeitamente ajustados a uma sociedade machista e patriarcal. 70%  dos casos de feminicídio são perpetrados justamente por parceiros íntimos e conhecidos, e não por alucinados na rua (http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054).

Maior punitivismo não é apenas a proposta mais demagoga, como também a mais burra, que não olha para os dados e nem para o funcionamento da sociedade. Como os casos podem ser denunciados e punidos se essas mulheres são muitas vezes dependentes não só emocionalmente, mas financeiramente dos violentadores? Em uma sociedade patriarcal, muitas vezes o trabalho feminino nem sequer é monetizado. Como serão punidos se apenas 30% a 35% dos casos de estupro são conhecidos, e 10% chegam ao conhecimento da polícia? Como se 70% das vítimas são crianças e adolescentes? Como se 24% dos violentadores são os próprios pais ou padrastos? Como se 26% da população acredita que as roupas curtas da mulher justificam um ataque? (http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054) Como se a gente cresce ouvindo que homem tem mais tesão do que mulher, que homem galinha é garanhão, e mulher tem que ser bela, recatada e do lar? Como se um estupro ou um homicídio às vezes é só uma leve transição do que até então se considerava ciúmes e possessão como prova de amor, com o aval da sociedade? Como se um diretor de teatro coloca a mão dentro do vestido de uma mulher ao vivo, e ele se explica dizendo que ‘A mulher não é um objeto, mas não deveria se apresentar como tal’ (http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/meti-mao-na-menina-diz-gerald-thomas-sobre-nicole-bahls-8091253)? Como se existe um programa Pânico, que apresenta mulheres como bonecas sexuais sem cérebro para a família brasileira rir semanalmente?

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Se estupro é considerado piada e não caso de polícia ?

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Se alguém como Danilo Gentili tem audiência?

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Se existem propagandas como essa?

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Se a indústria da pornografia é toda voltada ao prazer masculino, mais especificamente, ao pênis, e ao sexo agressivo com mulheres, além de destruir a vida de muitas atrizes (https://www.youtube.com/watch?v=BMgAJwc7ocE)? Se os meninos são incentivados desde adolescentes a assistirem isso e a desrespeitar mulheres? Se é normal ser xingada na rua ou na balada por não responder a uma cantada ou não aceitar ficar com alguém? Se é normal em questão de segundos um “elogio” virar uma agressão?

E mesmo se as mulheres violentadas conseguem vencer todas essas barreiras, perceber os abusos antes que seja tarde demais e ter condições psicológicas e financeiras para se livrar do violentador e fazer a denúncia, podem ainda ser desacreditadas ou ridicularizadas pela própria polícia. Como maior punitivismo pode ser eficaz se dependemos de uma justiça que no Pará enviou uma menina de 15 anos acusada de furto a uma cela com 30 homens que praticaram todos os abusos com ela, sob anuência dos carcereiros? Se a juíza que participou dessa decisão seis anos depois foi promovida (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/10/03/no-para-juiza-que-mandou-menina-de-15-anos-para-cela-com-30-homens-e-promovida.htm)? Se existe um projeto de lei que visa simplesmente revogar a lei que dispõe atendimento às vítimas de violência sexual, como se as mulheres não fossem dignas de ajuda nessa situação (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=586417)?

Vocês realmente acham que o problema é a falta de leis ou falta de dureza na punição e não tudo o que existe antes do crime? Não enxergam todo o contexto social que exalta relações de poder, comando e violência de homens para com mulheres, mas depois condena o homicídio, quando esse finalmente ocorre? Essa é a cultura do estupro e vocês podem negá-la o quanto quiserem. Afinal, tem gente que nega o aquecimento global e a teoria da evolução também. Vocês podem se cegar para as causas de um problema e tentar punir e remediar o quanto quiserem, mas vai ser só o caminho mais curto para a barbárie.